É muito raro que se conheça alguém que com menos de 20 anos de idade, estivesse interessado em ser estagiário de uma instituição governamental que lidasse com coisas antigas. Em uma fase de adolescência – ora inspirada pelo rock and roll, ora inspirada pelo tropicalismo – pouca gente, na verdade, queria trabalhar. Talvez, esse passado interessante, explique como Carlos Amorim se tornou um dos maiores conhecedores e gestores da cultura brasileira, ocupando inúmeros cargos como gestor, como o de superintendente do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, por quase 10 anos na Bahia.  Mas falar de águas passadas, não é algo que lhe atraia. “Mas não tenho nostalgia, penso sempre no futuro. Estou interessado em construir coisas novas”, diz enfático, com o mesmo entusiasmo de quem quis arregaçar as mangas, sendo tão novo, e conseguiu ter um currículo invejável. O estado baiano, e todas as suas capilaridades, são suas paixões. Ele ama a capital, seu centro histórico, o recôncavo, as igrejas, os fortes, e os traços de profissionalismo e baianidade de gente como Marlon Gama, Cristina Calumby, David Bastos, Carybé, Emanuel Oliveira, Sante Scaldaferri – tão célebres no que se propuseram a fazer. E com tamanha grandiosidade de inteligência, ele é a antítese de qualquer poderoso desses que se tem notícia, porque não é status o que ele busca. Com pés no chão, cabeça no lugar e muita criatividade,Amorim é um eterno estudante, e por mais paradoxal que pareça, é também um intelectual nato. 

 

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Como começou sua trajetória profissional?

Comecei a trabalhar muito cedo, desde os 16 anos. No início da minha vida profissional fui estagiário do IPHAN, e passei por vários órgãos da área de cultura. Trabalhei na Prefeitura de Salvador (no projeto da Prefeitura do Centro Histórico), no IPAC, fui vice-presidente da Fundação Cultural do Estado da Bahia, assessor e diretor administrativo-financeiro do Teatro Castro Alves. Bom, transitei nessa área de cultura e fiquei um pouco no patrimônio e depois construí minha carreira, trabalhei na Companhia DOCAS, em prefeituras, na iniciativa privada e ocupei outras funções de gestão que foram muito importantes para mim, que me deram bagagem. Mas nunca me afastei completamente da área de patrimônio, sempre acompanhando as movimentações, ajudando nas discussões, sempre tendo interface com pessoas importantes que atuavam na área. Estive sempre próximo de Marcia Santana, arquiteta importante da universidade, de Luiz Viana, atual presidente da OAB, que dirigiu órgãos importantes no patrimônio nacional, de Paulo Damasceno, e todos juntos discutíamos com uma geração mais antiga, sobre o patrimônio. 

É interessante como uma área criativa pode ter consequências para a vida das pessoas”

O que mais lhe interessava nessa área?

O aspecto da criatividade. Sempre. É interessante como uma área criativa pode ter consequências para a vida das pessoas. A história, a beleza, a arte, a cultura podem melhorar a vida das pessoas, o ambiente da cidade, o ambiente cultural onde as pessoas vivem. 

E como se deu a entrada no IPHAN?

Minha passagem mais recente pelo IPHAN foi da seguinte forma. Eu estava com um problema muito sério de saúde e parece brincadeira, mas eu recebi um convite do presidente da época para que eu fosse convalescer trabalhando lá (risos). E foi engraçado, porque a instituição é muito tradicional, fundada em 1937, muito interessante, com uma estrutura sólida, importante, com uma cultura organizacional bastante enraizada, mas era um mar de problemas. E eu fui, para tentar organizar a situação. Havia uma dificuldade grande de execução orçamentária, que era baixa, e não havia um banco de projetos. Esses eram os principais problemas existentes. Tradicionalmente o sudeste brasileiro sempre abocanhava a maior parte dos recursos destinados ao patrimônio histórico. Nesse período foi importante demonstrar que o acervo da Bahia era muito numeroso, e nessa época provamos isso, a Bahia saiu de 3º lugar para 1º, em acervo, que quando é mais numeroso, recebe mais investimentos. Passou-se quase dois anos criando projetos, coisa que não existia e assim seguimos o trabalho com bons resultados. 

De forma objetiva e clara, o que é patrimônio histórico?

É uma ação do estado, em níveis municipal, estadual e federal, no intuito de proteger algo que é imprescindível para a compreensão da história das pessoas que vivem num determinado lugar. É a proteção através de um ato administrativo próprio, para que algo não possa ser esquecido ou dissociado do que constitui nossa história; ou seja: um elo muito profundo entre o passado e o futuro. O patrimônio é constituído no presente, através de uma complexidade de estudos, mas é essa ligação entre o que foi e o que será. A proteção é uma garantia histórica, em dimensões material – quando se protege bens móveis e imóveis, que constituem marcos de referência – e imaterial – quando são eventos – para que se mantenha o conhecimento daquela memória. No entanto, as pessoas as vezes pensam que patrimônio é algo bem diferente. Um dia desses ouvi que queriam registrar, através de uma lei estadual, as torcidas dos times baianos, como patrimônio. E mesmo sendo torcedor, e conhecedor da relevância desse movimento, reconheço que é impossível registrar esse tipo de situação, pois ele fere todo o ritual do processo de registro do patrimônio imaterial. 

No mundo inteiro o luxo é andar a pé pelas cidades; quando se viaja para lugares que têm grandes centro históricos, o ideal é andar com segurança e em ambientes agradáveis”

E a ligação do crescimento das cidade e proteção do patrimônio?

O crescimento das cidades traz uma série de problemas; por outro lado, a cidade é a grande solução para a vida das pessoas, no século XXI. A população rural é cada vez menor, porque as metrópoles oferecem uma diversidade de serviços que não há no campo. E patrimônio é somente um dos desafios que se tem nessa situação. Precisa-se de uma política de organização e acolhimento de patrimônio, dentro da estrutura. Se tentou todo tipo de solução, mas isso ainda não trouxe resultado. Mas consideremos que nunca houve no Brasil grandes programas de investimentos no patrimônio, bem diferente do que ocorre no restante do mundo. Em Quito, há um percentual do orçamento nacional que se destina a manter o centro histórico. Em outros lugares, a política de turismo tem uma interface grande com o patrimônio, como no Peru. Lá existe uma mobilização pública e privada que investe em restaurações por conta do fluxo turístico, que funciona favoravelmente. Em Salvador, cidade de território densamente povoado, temos um centro histórico, com muitas ruínas, e esse é um problema que precisa ser resolvido. No mundo inteiro o luxo é andar a pé pelas cidades, quando se viaja para lugares que têm grandes centros históricos, o ideal é andar com segurança e em ambientes agradáveis. A proximidade do porto com o centro histórico, na capital baiana, precisa ser melhor aproveitada, com uma intervenção que atraia o turista para aquela região. Na Copa do Mundo houve um investimento específico que deixou a população e os turistas circulando com desenvoltura nessas áreas, em uma oportunidade única.  E é possível estruturar o patrimônio de uma forma que atraia o turista para a cidade e, ao mesmo tempo, melhore a qualidade de vida de seus habitantes. Os portugueses e espanhóis falam de turismo patrimonial o tempo inteiro, vendendo a história deles e apostando nisso.

O baiano tem um olhar diferenciado sobre sua própria cultura. Baiano gosta da Bahia, isso é uma particularidade”

O baiano tem um olhar diferenciado sobre o patrimônio cultural?

O baiano tem um olhar diferenciado sobre sua própria cultura. Baiano gosta da Bahia, isso é uma particularidade. Se reflete na maneira de falar, no comportamental, numa certa permeabilidade social maior que nos outros estados. É mais fácil transitar verticalmente na sociedade baiana se você tem conhecimento da cultura e da vivência. Isso no espaço histórico e social, compartilhando experiências e no meio dessa atitude toda há o patrimônio que as pessoas valorizam.

Me desencanta realmente a falta de recursos, o arruinamento do patrimônio rural no recôncavo baiano e no centro histórico de Salvador”

O que mais lhe encanta e desencanta na arquitetura presente no patrimônio histórico da Bahia?

Difícil responder. São muitas joias arquitetônicas. O Forte São Marcelo é excepcional, a Catedral Basílica de Salvador, a Igreja de São Domingos, que tem uma coleção de imaginária incrível, e a Igreja de São Francisco, é claro. A Igreja do Passo é inacreditável, toda de prata, de uma época quando valia mais que ouro, a Igreja da Saúde é esplendida, Nossa Senhora da Purificação em Santo Amaro. E Rio de Contas, que é pouco valorizada, destino ignorado, mas um lugar que traz uma beleza muito pouco vista e está totalmente preservada; uma beleza inacreditável.  A Chapada Diamantina como um todo tem um conjunto muito interessante, de grande valor. E o que mais me desencanta realmente é a falta de recursos, o arruinamento do patrimônio rural no recôncavo baiano e do centro histórico de Salvador. E essa falta de estrutura de lugares tão maravilhosos como Cachoeira, tão perto da capital baiana. As pessoas vão em Praia do Forte, mas não vão em cidades como essas. 

Qual seu olhar sobre os profissionais de arquitetura e decoração na Bahia, quais trabalhos mais admira?

É uma lista grande. Difícil falar, mas há muitos talentosos na Bahia, é uma área onde há uma vivacidade, uma criatividade maravilhosa. Dos que eu conheço, gosto muito de David Bastos, que é uma das grande personalidades da arquitetura baiana no Brasil, Ana Paula Magalhães, Avelino Fernandes, Sidney Quintela, Fernando Frank, Marlon Gama, jovem e talentoso, Cristina Calumby, com trabalhos muito admirados pela baianidade, Antônio Caramelo, com grandes projetos, e Adriano Mascarenhas, jovem talentoso e premiado internacionalmente. O ruim de numerar é que sempre esquecemos de alguém. 

E artistas plásticos?

São tantos! Tem essa geração que é consagrada, como Emanuel Araújo, grande pensador, Carybé, Calasans Neto, Jenner Augusto, Juarez Paraíso, Maria Adair, Rubem Valentim, Sante Scaldaferri, Mario Cravo – e toda a família Cravo, tão talentosos. E temos Bel Borba, o grande nome da arte baiana no momento, com um trabalho internacional importante, com uma criatividade fabulosa, ele tem a cara da Bahia. Tem o Marcos Zacaríades, a Nadia Taquary. Certamente omiti dezenas de talentos, porque há muitos, e estão aparecendo os jovens, com força, já nas galerias. Tem muita gente importante na arte da Bahia.

Qual item de decoração é fundamental em seu ambiente de trabalho e em casa?

Uma boa cadeira e uma boa luminária. Eu leio muito e as duas coisas são fundamentais.

Qual lugar do mundo gostaria de conhecer?

Gostaria de ir à China. É um lugar milenar, que vive um conflito constante entre permanência e desaparecimento. E eles constroem e descontroem. E detonam a ideia da originalidade, e com eles a cópia consegue ser melhor do que o original, que já sofreu, se desgastou. Fora que é um país com uma história impressionante, e talvez eu fosse gostar da gastronomia também.

Em toda sua trajetória profissional houve alguma homenagem especial que lhe tocou?

Houve sim, me sinto inibido em comentar. Algumas discretas e individuais, outras públicas que me marcaram – como o título de cidadão de Rio de Contas, é um orgulho. Mas não tenho nostalgia, penso sempre no futuro, estou interessado em construir coisas novas. Não estou preso ao que eu já fiz, mas acho que já fiz algumas coisas bacanas, isso vale.

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